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sábado, 29 de outubro de 2011

À boleia no 28

Não se pode dizer que o eléctrico seja um meio de transporte confortável. De forma alguma, muito menos para quem vai de pé - e, como se pode ver abaixo, só um terço dos felizardos consegue ir sentado. Tão pouco é rápido ou ágil ou flexível. Se tivermos pressa, não vamos de eléctrico. No entanto, os eléctricos têm o encanto único das coisas e pessoas antigas, que conseguem manter-se originais e iguais a si próprias num mundo que foi ensinado a descartar, a ignorar e a desvalorizar o que é velho. Em Lisboa, resistem ainda cinco carreiras de eléctrico (12, 15, 18, 25 e 28). Mantiveram-se as carreiras mais turísticas e espero que a grande tesoura que anda por aí a cortar tudo a eito tenha a clarividência suficiente para perceber que há coisas que não são somente um custo ou uma receita.

Quando entramos num eléctrico, entramos nos meados do século XX. Os originais, que começaram a circular em 1901, já só os podemos ver no Museu da Carris, mas os que agora circulam datam de 1960 e isso nota-se pela quase total ausência de plásticos no seu interior. A madeira e o metal são materiais dominantes e as recuperações que foram sofrendo tiveram o cuidado de pouco interferir no aspecto original.


Para começar a minha ronda pelos eléctricos lisboetas, apanhei o 28 em Campo de Ourique, à frente da Igreja do Santo Condestável. Ele sai da paragem anterior, nos Prazeres, e percorre as entranhas de Lisboa até ao Martim Moniz, que foi precisamente o fim deste meu passeio.



Depois de pagar os dois euros e oitenta e cinco (!!!) que me pediram pelo bilhete, assentei arraiais na parte traseira do veículo, encaixada entre a pega de segurança, um balcão que me valeu umas nódoas negras e um grupo de miúdas de doze anos. Mas tinha também uma janela enorme à minha disposição e um mínimo de estabilidade para conseguir tirar fotografias sem ter que me agarrar.  

O dia estava claro e luminoso. Depois de Campo de Ourique, o 28 passa pela Basílica e pelo Jardim da Estrela, seguindo em seguida pela Calçada abaixo até São Bento. Todo o percurso intercala a grandiosidade das praças com ruas estreitas, onde as gentes envelhecidas da nossa Lisboa espreitam os que passam pela janela, fechada claro está, num misto do frio constante que não sai dos ossos depois dos setenta, de recolhimento e de pudor ou, pura e simplemente, pela ausência dos rostos do passado que circulavam pelas ruas, que incentivavam a conversa de parapeito e que foram trocados por rostos e corpos de tantos e tantos estranhos...


Da Rua de São Bento, entra-se na Calçada do Combro, íngreme como ela só, e onde à medida que se sobe se começa a ver o traçado de Lisboa, com a Basílica já bem distante, para em seguida descer pelo Calhariz até ao Largo de Camões. Aí, pelas transversais, conseguimos vislumbrar o Tejo lá ao fundo, mas o eléctrico, mesmo lento, passa rápido demais para nos perdermos devidamente no seu infinito azul.


Seguindo caminho, o 28 leva-nos até à Baixa, onde metade dos turistas que me acompanhavam na viagem encontram o seu destino. Duas japonesas que ali seguiam encontram-se encurraladas entre uma porta que fechou antes que pudessem sair e o terrível obstáculo da língua. Nada que não se resolvesse com as duas ou três vozes que se levantaram e pediram ao condutor para abrir a porta. Elas, ataviadas como só os turistas japoneses conseguem, desfizeram-se em sorrisos, arigatôs e acenos e nós lá ficamos com sentimento de dever cumprido no coração. 


Passada a Baixa, o velho 28 estava de novo pronto para subir mais uma colina, passando pela Sé e perdendo mais uma fatia de turistas. Entrámos então no esplendor de Santa Luzia, com a sua majestosa buganvília e, pouco depois, nas Portas do Sol, onde o rio, a cidade e o grande astro nos abrem os braços para sentirmos o seu abraço caloroso. As esplanadas estavam cheias, o tempo parecia passar bem devagar por aquelas bandas e eu estive tentada a sair e deixar-me ficar por ali. Mas os carris do eléctrico seguiam caminho e, apesar da tentação, eu queria levar a minha jornada até ao fim...


Um pouco à frente e antes de seguir para a Graça, o motorista advertia em três línguas que para quem quisesse ir ao Castelo, aquele seria um bom sítio para sair. E uma nova e maior revoada seguiu o conselho.


Uma passagem ainda por São Vicente de Fora fez sair os dois únicos turistas que haviam resistido aos apelos do Castelo. O eléctrico tornou-se a partir daí num transporte para nos levar, lisboetas, até ao fim da linha. Já não se ouvia falar francês ou inglês e o japonês tinha deixado de se ouvir há muitos monumentos atrás. Ficavam apenas as conversas sobre o dia-a-dia, sobre a crise, sobre a falta de emprego e sobre as dificuldades da vida.


Por fim, entrámos na Almirante Reis, que se abria grandiosa para nos receber e nos deixava antever o fim da nossa viagem.


Chegámos ao Martim Moniz, última paragem. Last Stop! anunciava o motorista. Como queria ver e sentir o eléctrico vazio, ali fiquei até sair o último passageiro. O motorista levantou-se e, vendo-me  sozinha e especada, lançou um olhar que dizia não percebes que é para sair? 



Claro que percebo, seu desmancha-prazeres, apeteceu-me dizer. Mas não disse. Desci os degraus,  saí e fiquei com a certeza que em breve percorrerei Lisboa nas outras quatro carreiras. Obviamente, partilharei convosco esses passeios.  

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